As mudanças que o tenente não viu.
Lúcio Albuquerque
Consultor: Abnael Machado de Lima, professor, historiador,
membro da Academia de Letãs e do Instituto Histórico e Geográfico de Rondônia
O tenente Fernando não demorou muito tempo em Porto Velho. Poucos
meses, há quem diga menos de dois, mas acabou inserido, certamente sem o
querer, na historiografia local por
razões que ele, certamente, nunca imaginou e nem iria querer.
Mas desapareceu sem deixar vestígios. E porque sumiu daquela maneira,
nunca explicada, ele não soube de coisas que aconteceram em seguida, com sua
geração, com seus amigos.
Para um jovem recém saído da Escola Militar, e de
uma cidade grande, o Rio de Janeiro, àquela altura capital da República, vir
para Porto Velho, distante e minúscula, com todos os tabus de cidades pequenas,
deve ter sido um choque imenso.
Acostumado
com o mar, e a outros lazeres comuns às cidades grandes de então, e o Rio de
Janeiro era o grande centro político, cultural e esportivo do Brasil dos anos
1940, com certeza ele sofreu muito, e talvez nem tenha tido tempo de se adequar
à realidade que passou a viver.
Bom dançarino, risonho, amigo de todos –
fato reconhecido até mesmo por alguns ferrenhos “aluizistas”, o tenente
Fernando acabou se destacando no pequeno meio social local.
Dentre seus companheiros de farda, uma
amizade logo se destacou, a que fez com o sargento Antão Marinho, também da 2a.
Rodoviária e que foi com ele e um contingente para a frente de serviço em São Pedro, e com quem
sairia para caçar no dia em que desapareceu. Marinho, depois, foi acusado de
ter participado do desaparecimento do oficial.
O QUE O
TENENTE NUNCA SOUBE
O
mundo que o tenente Fernando nunca viu foi muito diferente daquele em que ele
viveu o último dia em que almoçou no acampamento da 2ª Rodoviária Independente,
e saiu para caçar.
Por
exemplo, o Tenente Fernando não soube da senhora Enola Gay, que teve pintado o
nome dela na fuselagem de um avião B-29 comandado pelo seu filho Paul
Tibbet que lançou no dia 6 de agosto,
sobre Hiroshima/Japão, a primeira bomba atômica empregada sobre uma cidade, e
que, a partir de então, o mundo nunca mais seria o mesmo, ou que tudo isso
aconteceria oito dias depois daquele domingo, 29 de julho, em que o oficial do
Exército saiu do acampamento onde se encontrava, na frente de serviço da 2ª
Companhia Rodoviária Independente que abria a estrada Amazonas/Mato Grosso,
para caçar um inambu.
O
tenente Fernando também nunca soube o resultado do campeonato carioca de
futebol daquele ano, nem que seu time de coração, o Flamengo, sob a batuta do
“Dotô Rubis” seria novamente campeão.
Em
Porto Velho ele também nada soube do Ypiranga, clube criado em 1919, que
naquele ano ganharia o primeiro campeonato de futebol promovido pela Federação
de Desportos do Guaporé, do recém-instalado Território Federal do Guaporé.
Nem
da professora Carolina Gardênia Rebelo de Figueiredo, a primeira mulher de
Rondônia a ser brevetada como piloto de avião pelo aeroclube que funcionava no
aeroporto do Caiari em 1947,e também a primeira local a pilotar uma aeronave,
na viagem até Guajará-Mirim.
Nem
que o município de Santo Antonio do Alto Madeira deixaria de existir, naquele
ano de 1945, e suas terras seriam incorporadas a Porto Velho, porque isso
aconteceu só a 17 de outubro daquele ano.
Ele
nunca mais veria sua mãe que, após seu desaparecimento, veio a Porto Velho e,
em sua homenagem, o seu motorista,
soldado e poeta Walter Bártolo compôs uma música, “Mãe sofredora” que, mais
tarde ele cantaria inclusive no programa do Chacrinha, no Rio de Janeiro.
Nem
que seus pais vieram a Porto Velho onde fizeram uma peregrinação visitando
pessoas que conheceram seu filho, ou que ela depositou uma foto dele em cada
altar da igreja do Sagrado Coração de Jesus.
Ou
que, num gesto de coragem, conforme
narrou o próprio Bártolo, designado motorista dos pais do oficial, sua mãe, ao
saber que uma pessoa citada em cartas pelo seu filho como um grande amigo, e que estava sendo torturado pelos que vieram tentar encontrá-lo, pediu que parassem com aquilo porque não
acreditava que a pessoa submetida a
tortura tivesse participado do desaparecimento.
O
tenente, porque desapareceu naquele 29 de julho de 1945, nunca soube que esse fato acabaria se transformando
em seguidas citações políticas nas disputas eleitorais do Território Federal do
Guaporé e daí em diante, na luta entre os aluizistas, cutubas, e os
adversários, peles-curtas, e que 70 anos
depois de sumir esse fato ainda seria tratado como um tabu por pessoas ligadas
aos cutubas.
E
ainda que seu desaparecimento suscitaria tantas versões, algumas descabidas, e
que seu comandante na 2ª Independente, o então capitão Ênio Pinheiro, em 1997
já general da reserva, surpreenderia os membros do Instituto Histórico e
Geográfico e da Academia de Letras de Rondônia com citações que os
participantes não compreenderam bem.
Porque
desapareceu naquele domingo, o Tenente Fernando nunca soube que 15 anos depois
um presidente, que fora militar também, mandaria abrir a rodovia Cuiabá-Porto
Velho.
E
que cinco anos depois, em 1965, o presidente
Castelo Branco criaria uma unidade de engenharia do Exército, o 5º Batalhão de
Engenharia e Construções que ficaria responsável pela manutenção aberta da
rodovia que depois passou a ser identificada por BR-29.
Também
ele nunca soube que pouco mais de um ano depois de seu desaparecimento o
governador Aluízio Ferreira, contra quem a oposição lançou fortes suspeitas de
envolvimento no caso, seria eleito como primeiro deputado federal do
Território.
Finalmente,
o tenente Fernando nunca soube que alguns de seus colegas de turma seriam, 20
anos depois, atores principais do movimento militar de 1964.
Amanhã:
TENENTE FERNANDO – 70 ANOS DESAPARECIDO (8)
Até um padre participou das buscas na selva