(Da série Coisas que acontecem com a gente)
Era no tempo que aquele
município da zona da mata ainda estava começando, e a
primeira emissora local de rádio, apesar de todos os problemas, ia
pontualmente ao ar por volta das 5h30, fizesse chuva ou prenunciasse aquele calor
misturado com o poeirão e a escuridão do início da manhã. Era aí por
volta dos primeiros anos da década de 1980.
E tudo se passou porque o
locutor que abria os trabalhos repetiu o gesto que fazia todos
os dias, quando ia saindo de casa: pegava uma latinha de vick vaporub
metia dois dedos dela e botava na boca, para massagear a garganta e poder
empostar a voz.
Naquele tempo era comum
faltar luz, e não só em Rolim, mas também em todo o Estado que
ainda caminhava com seus primeiros passos, mas a falta de luz
elétrica não era empecilho para quem tinha de cumprir religiosamente suas
obrigações.
Às 4h30 o locutor
levantou, arrumou-se, tomou o cafezinho e foi cumprir o último ritual
antes de sair de casa. Eram gestos mecânicos, porque diariamente fazia a
mesma coisa, nem dava para se enganar.
Em cima da geladeira
ficava a latinha, daquelas pequeninas e arredondadas, de vick. Nem
precisava de luz para saber que naquele local estava o vick, e era só
uma questão de esticar o braço, abrir a dita lata, passar os dois dedos
juntos nela, o anelar e o indicador, e aí botar o produto na boca para sair de
casa e ir para a rádio, onde tinha de ligar a luz e botar o equipamento para
esquentar, para 5h30 sua voz ser ouvida em toda a região.
Tudo repetido
diariamente. Era só meter o dedo na latinha e pronto. Na noite anterior a
irmã de sua mãe viera da roça ali para as bandas da localidade de
Castanheiras, e trouxera os dois filhos que ficaram orgulhosos de conhecer o
primo famoso, locutor de rádio que eles ouviam diariamente na pequena
casa no lote e que eles, crianças de 5 e sete anos, citavam cheios de si aos
colegas que aquela voz era do parente, sobrinho da mãe, filho da tia, que
morava na cidade.
A tia e os primos do
locutor vieram do mato para ir ao médico na cidade. Foi exato no
momento em que botou os dois dedos na lata de vick, e meteu aquela massa na
boca que o primo famoso das duas crianças deu-se que algo estava
errado, e muito errado.
É que a tia e os dois
primos da roça tinham de fazer alguns exames, um deles o de fezes. E a
mãe do locutor, irmã da tia dele e tia das duas crianças, tinha dado para
a visitante três latinhas secas de vick que o filho usava e a tia do locutor
havia coletado fezes de cada um em cada uma das latas e, como fora
orientada pela irmã, as colocara tampadas em cima da
geladeira.
E os dois dedos do
sobrinho, primo das duas crianças, e locutor afamado na região de
Rolim, porque repetia mecanicamente o mesmo gesto todos os dias no
lusco-fusco para ir abrir a rádio e colocá-la no ar, ao invés de pegar a
latinha com o vick, pegara uma latinha seca de vick, enfiara os dois dedos e
levara o material, coletado para fazer o exame de
fezes, para dentro da
boca.
Nesse dia a rádio
atrasou, e muito, porque o locutor afamado vomitou muito, teve enjoos, e nunca mais quis empostar a voz com o vick.
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