domingo, 20 de abril de 2014

COISAS QUE ACONTECEM COM A GENTE

LEMBRANÇAS DE OUTRAS SEMANAS SANTAS

Lúcio Albuquerque

            Eu tinha uns sete anos, morava no Beco do Macedo, bairro sem água encanada, sem escola pública nem luz elétrica, e distante de tudo, àquela altura aí por volta de 1954 em Manaus, mas tive em plena sexta-feira santa uma excelente lição de português, aprendida em meio a uma desavença entre meus pais. Resolvi interromper e escrevi um bilhete entregue ao pai: Oje não se briga.
            Serviu para acabar a desavença, dessas que casais têm comumente. Mas não serviu só para isso, porque naquela manhã de uma data em que lembramos o momento singular e que é a base do cristianismo, a ressurreição de Cristo, também serviu para eu tomar o que considero como a melhor lição de português (*)  que tomei na minha vida, porque meu pai fez um bilhete de resposta, no mesmo pedaço de papel:
            Oje é com H.
            Há muitas lembranças de outras semanas santas na minha vida: boas, como a em que casei numa segunda-feira, mas, três anos depois, uma péssima, justo na sexta-feira da paixão minha mãe morreu.
            Naqueles idos, nem faz tantos anos, mas as mudanças comportamentais e valorais foram tantas que parecem fazer milhares de séculos. Havia N coisas que fazíamos na semana santa, inclusive saber que durante o período não levaríamos nenhuma surra – mas aprendíamos rápido que no sábado de aleluia a caderneta seria aberta e aí seria a hora do acerto de contas.
            Durante a semana inteira, até domingo, não comíamos carne – que em Manaus, não sei por qual motivo era chamada de carne verde. Eu, que desde criança nunca gostei de comer frango, passava bem com meu prato predileto, o peixe, e a mão santa da dona Zélia que conseguia, literalmente, tirar leite de pedra na cozinha.
            Aulas só até quarta-feira. Desde o domingo as imagens de santos estavam cobertas. Na sexta-feira em casa não se varria nada, não se falava alto, e – desde quando tivemos nosso primeiro rádio na década de 1960 – o rádio ficava desligado.
            De sexta para sábado quem criava porco, galinha, carneiro, bode, pato, se queria não ser surpreendido com o sumiço desses animais tinha de dar plantão a noite toda, para evitar que, conforme a tradição, fossem furtados. Algumas vezes, sábado pela manhã, até o dono era convidado pelos ladrões a participar do almoço e não foi só uma vez que ali acabou descobrindo que a galinha ou o porco à mesa era seu favorito na criação. Mas aí o jeito era levar na esportiva e jurar que, no próximo ano, teria mais vigilância.
            E a técnica de furtar era bem simples. Naquele tempo criavam-se galinhas nos quintais, com os animais dormindo empoleirados. Na madrugada do sábado era só pegar um pouco de visgo de sapoti ou de caju untar bem numa vara e aí enfiar a dita cuja no poleiro. Quando chegava onde estavam os animais dormindo, era dar uma balançada. Eles trocavam a posição dos pés, pisavam na vara e vinham, sem barulho, para a mão do ladrão que apenas lhe torcia o pescoço.
            Roubar porco também era fácil: o animal, dormindo, alguém chegava nele, acendia um palito de fósforo e deixava que ele aspirasse a fumaça pelas narinas. Acabava ali e aí o trabalho era carregar o bicho – normalmente o escolhido era sempre o mais bonito.
            De sexta para sábado era tempo de serrar velho. a brincadeira consistia em saber em que casa havia um velho doente, podia ser um parente do grupo. Aí nos reuníamos em frente à casa do cidadão e, munidos de um serrote bem velho e um pedaço de tábua passávamos a serrar preparando o caixão. Não poucas vezes a coisa terminava em tiro de sal ou com alguém correndo arás da turma armado com um fio elétrico ou um pedaço de ripa. Aí, debandada geral e depois muitas risadas, rir até dos que tinham levado a pior.
            Sábado era malhar o judas, com uma competição sem julgamento sobre quem fazia o melhor e o mais bonito dos judas. E, como soe acontecer, também os bonecos de judas eram roubados na concorrência, franca e divertida, naquela disputa rua contra rua.
            Aqui em Porto Velho sei pelo menos de uma situação interessante: um grupo resolveu aliviar um porco enorme de um criador ali pelas bandas do Mocambo. Animal grande, resolveram conduzi-lo arrastado. Ao chegarem numa esquina vem descendo uma equipe de policiais, aquela patrulha feita a pé, chamada carinhosamente de bate-pau. Liderando, o subdelegado e jornalista Simeão Tavernard, tido como o melhor dos goleiros que já passou por aqui.
            O Simeão mandou os outros policiais pararem e foi até ao grupo. Naquele tempo não havia luz elétrica como agora. Ele chegou e dois do grupo adiantaram-se. Simeão perguntou o que estava acontecendo. Estamos levando um amigo para casa. Ele bebeu demais, responderam. Simeão foi embora e o grupo foi em frente.
            No sábado bem cedo o Simeão entrou na redação do Alto Madeira, ainda na Rua Barão do Rio Branco, e perguntou a um que estava no grupo: Onde é que vocês vão comer aquele bêbado dessa noite?. 
             A coisa terminou em gargalhadas, durante o repasto na casa de um dos que estavam carregando o bêbado.
           

(*) Tive, não nego, excelentes professores da língua camoniana, meus pais, dentre eles, que me obrigavam a ler e explicar o que tivesse lido, mas aquele fato sempre vem à memória quando lembro das muitas lições que tomei, e que continuo tomando diariamente, o Oje é com H.

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